#RelendoKvothe || Releitura de O Nome do Vento – Parte 5
Guia do #RelendoKvothe: Introdução ao projeto || Parte 1 (Prólogo ao Capítulo 10) || Parte 2 (Capítulo 11 ao Capítulo 20) || Parte 3 (Capítulo 21 ao Capítulo 30) || Parte 4 (Capítulo 31 ao Capítulo 40) || Parte 5 (Capítulo 41 ao Capítulo 50).
Certo, mais um atraso. Mas você vai me perdoar depois dessa semana um tanto quanto agitada. Dessa vez não foram apenas provas (que felizmente acabam na próxima sexta), mas também uma cirurgia de emergência que meu irmão precisou fazer e cancelamento de planos de viagem para o Rio de Janeiro, onde eu estava planejando encontrar alguns leitores. Some isso à indisposição após uma gripe adquirida no sábado. Mas tudo bem, vida que segue, certo?
Conhecemos Elodin e Devi, e acho que esses simples fatos valeram a pena a leitura de todos os dez capítulos (que, aliás, foram interessantes, embora não tenham sido os mais interessantes até agora). Vamos à análise?
Capítulo 41 – Sangue de amigo
Quadragésimo primeiro capítulo. O tempo passa voando, não? Kvothe, em tão pouco tempo na Universidade, estabeleceu um recorde: conseguiu entrar no Arcanum no primeiro bimestre. Por outro lado, também será açoitado em público pelo ocorrido com Hemme – o que, aliás, é culpa dos dois: talvez se odeiem por serem tão parecidos, ambos presunçosos e orgulhosos.
Este capítulo traz a punição de Kvothe. E mais uma vez, como eu já havia comentado anteriormente, ele desmitifica algo que o acompanha até mesmo enquanto Kote, anos depois: o título “Sem-Sangue”. Antes de ser açoitado, ele revela que tomou nahlruta, o que provocou efeitos como redução de dor e uma espécie de estancamento do sangue. Ou seja, Kvothe não sangrou conforme o esperado ao levar as três chicotadas diante de centenas de alunos da Universidade. Por um lado, isso foi uma vitória particular, já que pareceu forte diante de todas aquelas pessoas e não sofreu como o Mestre Hemme esperava. Por outro... Bem, existe o karma. E eu acredito que ele aja fortemente nesse livro.
Depois disso, ignorando a queimação nas costas, pus os pés no banco e soltei os dedos que agarravam a argola de ferro. Um rapaz deu um pulo à frente, como se esperasse ter que me segurar. Lancei-lhe um olhar sarcástico e ele recuou. Peguei a camisa e a capa, coloquei-as cuidadosamente sobre um dos braços e me retirei do pátio, ignorando a multidão silenciosa que me cercava.
Ah, no capítulo 41 temos uma menção bem rápida ao Marionetista, a figura curiosa e misteriosa até mesmo para quem já seguiu com a leitura de O Temor do Sábio. Teorias sobre esse personagem? Eu até tenho algumas, e a menos bizarra é aquela que diz que é filho de Lorren. Essa, porém, é um pouco racional demais – e me desculpe, mas aqui não trabalhamos com coisas racionais. Se não for teoria louca e que exploda minha cabeça com um fundo de lógica, estou fora.
Kvothe se encaminha à Iátrica com Mestre Arwyl para ser costurado, como o professor havia orientado anteriormente. Arwyl se surpreende com a limpeza do corte e o fato de não ter saído tanto sangue. Mas, é claro, se ele não descobrisse que Kvothe ingeriu nahlruta, eu teria desconfiado muito de suas habilidades como fisiopata. Porém, mesmo sendo um professor e desaprovando a atitude, Arwyl compreende. E deixa uma lição que muitos adultos parecem ter esquecido hoje em dia, afinal de contas.
(...) Quem pensa que os meninos são meigos e inocentes nunca foi menino, ou já se esqueceu como é. E quem pensa que os homens não são ferinos e cruéis de vez em quando provavelmente não sai muito de casa e com certeza nunca foi fisiopata. Nós vemos os efeitos da crueldade mais do que qualquer outra pessoa.
O capítulo é curto, mas antes que termine conhecemos mais uma peça no quebra-cabeças que a Universidade foi para Kvothe: a Re’lar Moula, aprendiz de Arwyl (cujo nome no inglês, a título de curiosidade, é Mola, então acho que dá para perdoar terem trocado na tradução).
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Moula por PetaloMaM. |
Capítulo 43 – O caminho bruxuleante
O caminho bruxuleante para fora do Arquivo para sempre, talvez?
Este capítulo é o karma agindo. Veja bem, o dia ainda não havia terminado. Foi uma sequência de: punição com açoites → Iátrica → Arquivo. Kvothe ainda estava sob os efeitos da nahlruta, que reduziam seus reflexos e deixavam-no sem aquele escudo de desconfiança que havia adquirido em Tarbean e costumava protegê-lo do mundo exterior. Após flagrar Ambrose tentando uma investida contra Feila na entrada do Arquivo, Kvothe não apenas o enfrentou, mas também acabou por humilhá-lo na presença da estudante. O que se mostrou um erro no mesmo momento, mas o garoto não notou em razão da nahlruta.
Enfim. Após uma breve troca de farpas, e Feila ter encontrado uma oportunidade para fugir, Ambrose pareceu se resignar e permitir que Kvothe entrasse no Acervo. Cobrou a Taxa do Acervo – inexistente, na realidade, mas Kvothe foi tapeado e deu um talento inteiro, que era metade das economias que possuía. Ambrose cedeu-lhe uma vela também, como um gesto de gentileza, já que os caminhos do Acervo eram escuros demais e não havia luz suficiente lá dentro. O raciocínio é simples: sabe-se que Lorren é neurótico com seus livros, certo? Então com certeza a última coisa que iria querer perto deles é uma vela. E foi exatamente o que Kvothe, ludibriado por Ambrose, levou consigo.
Antes de o novo estudante do Arcanum ser flagrado e levado até Lorren, porém, ele vê as portas de pedra. Sim, as famosas e especulativas portas de pedra do Acervo.
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Uma arte de capa fake feita por Eric Summers para Doors of Stone, que mostra Kvothe e Denna diante da porta de pedra com quatro chapas de metal do Acervo. |
Era de um pedaço sólido de pedra cinzenta, da mesma cor das paredes circundantes. O umbral tinha 20 centímetros de largura, também cinzento e também feito de uma única peça inteiriça de pedra. A porta e o umbral tinham encaixes tão justos que seria impossível enfiar um alfinete em suas frestas.
Sem dobradiças. Sem maçaneta. Sem janela ou painel corrediço. Sua única característica eram quatro chapas duras de cobre. Ficavam grudadas na lâmina da porta, que se nivelava com a frente da moldura, a qual era nivelada com a parede ao redor. Podia-se passar a mão de um lado ao outro da porta praticamente sem notar qualquer divisão.
Apesar dessas ausências notáveis, aquela vastidão de pedra cinzenta era sem dúvida uma porta. Cada chapa de cobre tinha um furo no centro e, mesmo não sendo do formato convencional, certamente se tratava de fechaduras. Lá estava ela, imóvel como uma montanha, serena e indiferente como o mar num dia sem vento. Não era uma porta para ser aberta. Era uma porta para permanecer fechada.
No centro dela, entre as chapas imaculadas de cobre, se via uma palavra gravada na pedra, em baixo-relevo: VALARITAS.
E aqui o sinal das teorias acende e apita enlouquecidamente. O que poderia ser?! Suponhamos que Valaritas esteja escrito em têmico, o idioma do universo de Patrick Rothfuss que parece se aproximar bastante do latim. Se você jogar no Google pela tradução do termo, obviamente não irá encontrá-lo. Por outro lado, em latim temos a palavra Veritas, que significa Verdade. Será que poderia ser essa a tradução? Alguns usuários do Reddit acham que sim. Considerando que seja de fato Verdade, poderíamos esperar o que atrás das portas de pedra? A Verdade sobre a Vida, o Universo e Tudo Mais? Livros sobre o Chandriano e o Amyr, assuntos sobre os quais Lorren desencoraja fortemente Kvothe a ir atrás? O túmulo de um rei morto? Segredos sobre a mesma magia que Lanre aprendeu antes de se tornar Haliax? Os Nomes de Todas as Coisas? Será que são a essas portas de pedra que o título do próximo livro se refere? Façam suas apostas.
Enfim, logo Kvothe é encontrado por dois estudantes e levado até Lorren. O mestre, como era de se esperar, fica fora de si, mas daquele seu jeito bem medonho. A sentença: Ambrose, cínico e colocando toda a culpa em Kvothe, está detido por negligência no cumprimento de seu dever. Kvothe, por outro lado, incapaz de contra-argumentar e provar que foi ludibriado por Ambrose, foi banido do Arquivo.
Posso soltar aqueles devaneios loucos durante os comentários sobre os capítulos? Posso. Como por exemplo: será que Lorren baniu Kvothe porque ele estava portando vela no Arquivo, ou porque ao ouvir que ele estava perto da “escada sudeste”, sabia que era próximo às portas de pedra, e resolveu bani-lo para que o garoto nunca mais se aproximasse das quatro chapas de metal e da Valaritas – Verdade que se esconde por trás delas (quem sabe tudo sobre o Chandriano e os Amyr)? Sei, forçação de barra. Mas possível.
Antes que alguém pudesse dizer mais alguma coisa, Lorren irrompeu cômodo adentro. Sua expressão, normalmente plácida, mostrava-se feroz e dura. Comecei a suar frio e pensei no que Teccam escrevera em sua Teofania: Há três coisas que todo homem sensato deve temer: o mar durante a borrasca, as noites sem lua e a ira de um homem gentil.
― Intenção? Pouco me importam as suas intenções, E’lir Kvothe, equivocadas ou não. A única coisa que importa é a realidade dos seus atos. Sua mão segurou o fogo. A culpa é sua. Esta é a lição que todos os adultos devem aprender.
Banido do Arquivo e de volta ao Rancho, Kvothe encontra Simmon e Manet. A multidão de alunos o vê e o burburinho começa, recordando seu açoite público pela manhã e o fato de o garoto não ter sangrado. Assim se cria uma lenda, certo? Tendo Kvothe gostado ou não de ser o centro das atenções naquele momento, é algo a que o garoto terá de se acostumar.
De toda a conversa entre os três, apreendemos algumas coisas: Ambrose e Kvothe não são pessoas que você gostaria de ter como inimigos; o primeiro é herdeiro primogênito e está na sucessão do trono de Vintas; o segundo está determinado a ter sua vingança. Peço que você relembre a noção de vingança de Kvothe, e o que ele fez com
Pike deliberadamente e de forma cruel.
Capítulo 44 – O vidro ardente
Utilizando novamente Harry Potter como comparação, se eu fosse escolher uma relação semelhante para comparar a que se estabelece entre Kilvin e Kvothe, certamente seria Hagrid e Harry. Além da semelhança física que comentei na parte IV – ambos são grandes e peludos como ursos –, a gente percebe no capítulo 44 que uma relação de confiança está timidamente sendo construída. Mais tarde, quando Willem, Simmon, Sovoy e Kvothe estão na Ankers comemorando a primeira onzena completa de Kvothe no Arcanum, e tocam no assunto de patrono, fica bem evidente quem poderia ser o mestre-patrono do ruivo: Kilvin. Até que Elodin é mencionado na conversa.
O que sabemos sobre Elodin? Que é um personagem fascinante, com certeza. Um pouco maluco, ele recorda muito outra pessoa que quem já leu os livros conhece muito bem – Auri. Nomeador-Mor, um dia também foi Reitor, o que deixa Kvothe genuinamente surpreso. Wil e Sim comentam que Elodin já foi mantido preso no Aluadouro quando enlouqueceu (a palavra não lembra um pouquinho abatedouro?), e que fugiu de lá, apesar de ser extremamente improvável até mesmo para um professor conseguir fugir dos quartos do lugar. A conexão de Kvothe à história do Grande Taborlin foi imediata, com especial atenção ao fato de Elodin ser nomeador, o que recordou as narrativas contadas por Skarpi. Ou seja, é previsível quem será o novo alvo de Kvothe na Universidade.
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Mestre Kilvin, também conhecido como melhor pessoa por mim. Arte de Shane Tyree. |
Capítulo 45 – Interlúdio: Uma história de taberna
Aqui Kote retorna ao presente. Mas há uma ligeira diferença. Ele não está mais sendo chamado de Kote pelo narrador. Tínhamos aprendido a fazer uma ligeira distinção entre Kvothe, o das aventuras, e Kote, o dono da Marco do Percurso (que aqui é mencionada como Marco do Caminho, o que imagino ter sido mero erro de revisão). Ambos eram a mesma pessoa, mas ao mesmo tempo, extremamente diferentes. Ali, entretanto, naquele interlúdio das páginas 296/297, Kote foi chamado de Kvothe o tempo inteiro. O ruivo recontar sua história talvez tenha causado efeitos muito maiores do que ele mesmo imagina. Será que, aos poucos, Kvothe retomou seu lugar ali dentro? Isso tudo pode soar insignificante... A não ser que, como eu, você imagine que há algum motivo que o obrigou a alterar o nome. Por exemplo, como se ele tivesse perdido o direito ou a capacidade de usar seu nome. Se você pensa em algo parecido, as coisas tomam um significado muito mais robusto nesse capítulo.
O interlúdio é, afinal, a introdução perfeita a Elodin. Kvothe explica porque não fez como nas histórias: pais mortos, criança sozinha e sofrendo, encontro com o eremita louco que ensina o nome do vento, criança que vira homem e decide cumprir sua promessa de vingança, homem que vai atrás do Chandriano e os mata. Não, as coisas não são assim, conforme Kvothe afirma.
― É claro ― disse Kvothe, com ar pomposo. ― Limpo, rápido e fácil como mentir. Sabemos como termina praticamente antes de começar. É por isso que as histórias nos atraem. Elas nos dão a clareza e a simplicidade que faltam à vida real.
Kvothe inclinou-se para a frente:
― Se esta fosse uma história de taberna, toda feita de meias verdades e aventuras absurdas, eu lhes contaria que o meu tempo na Universidade foi gasto numa dedicação pura. Eu teria aprendido o nome eternamente mutável do vento, partiria a galope e me vingaria do Chandriano. ― Estalou os dedos com força. ― Simples assim. Mas, embora isso pudesse render uma história divertida, não seria a verdade. A verdade é esta: fazia três anos que eu vivia o luto pela morte de meus pais, e o sofrimento daquilo tinha-se esmaecido numa dor surda e contínua.
Kvothe continua, afirmando que nem sempre foi fácil, e que as cenas que presenciava entre pais e filhos faziam uma raiva arder no fundo do seu coração. Porém, sendo racional, o Chandriano não havia nunca mais aparecido na sua vida até aquele momento. Não era essa a coisa mais importante em sua mente. Ele chegara na Universidade, e embora tenha ido com o objetivo de descobrir o nome do vento, matar o Chandriano e encontrar os Amyr, tinha outras coisas mais imediatas com as quais se preocupar. Por exemplo, sobreviver. Inimigos dentro da própria Universidade que eram mais perigosos, naquele momento, do que o Chandriano.
Ainda assim...
― Mas, apesar disso tudo, ainda podemos ver que até a história mais fantasiosa contém um fragmento de verdade, porque de fato encontrei algo muito próximo do eremita louco da floresta. (...) E eu estava decidido a aprender.
Capítulo 46 – O vento eternamente mutável
Você quer ter uma noção exata de quem é Elodin? O primeiro parágrafo do capítulo 46 é perfeito para isso:
Elodin revelou-se um homem difícil de achar. Tinha um gabinete no Cavus, mas nunca parecia usá-lo. Quando visitei a seção de Registros e Listas, descobri que ele só lecionava uma matéria: Matemática Improvável. Mas isso não chegou a ser útil para encontrá-lo, porque, de acordo com o registro, o horário da aula era “agora” e o local era “todos os lugares”.
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Elodin. Arte por OffTheRiot. |
Elodin é louco e extremamente e abstrato. Retruca Kvothe quando ele afirma que tinha a esperança de falar com o professor, afirmando que um aluno deveria ter aspirações maiores; quando o ruivo diz, então, que gostaria de aprender a arte da nomeação, Elodin alega que é uma meta alta demais. O que temos para agora, então? Foi ordenado que Kvothe buscasse três pinhas com algumas especificidades. E o garoto foi atrás delas. Quando voltou, onde Elodin estava? Em lugar algum.
Enfim, este capítulo não deixa de ser fascinante. Mostra, pela segunda vez na história, alguém literalmente nomeando algo. Kvothe descobre que não estava tão errado ao associar o que ouvira na Ankers sobre Elodin com a história do Grande Taborlin. Por fim, deixa evidente o quanto o Nomeador-Mor é insano. Mas todos os homens brilhantes o são, não?
Em O vento eternamente mutável Kvothe também conhece Alder Whin, um antigo guildeiro de Elodin. O homem simplesmente enlouqueceu. O mestre parece ter uma afeição especial por Whin, deixando que tenha seu livre-arbítrio ainda que esteja internado no Aluadouro. Whin é o exemplo perfeito dos efeitos que aprender nomeação pode deixar nas pessoas. Elodin dá a entender, de modo geral, que todas as pessoas que estão internadas no manicômio da Universidade estão ali por terem tentado aprender essa arte, afirmando que “a trigonometria e a lógica diagramática não fazem isso”. Talvez por esse motivo Elodin tenha levado Kvothe até ali: para que veja com os próprios olhos e entenda os riscos do que deseja fazer. Em seguida, após se despedir de Whin, Elodin decide visitar o antigo quarto em que ele mesmo foi mantido por dois anos. E é lá que ocorre o que tanto surpreende Kvothe.
― Ora! ― exclamou Elodin, de repente, rindo. ― Foi quase esperto por parte deles! ― comentou, recuando dois passos da parede. ― CYAERBASALIEN.
Vi a parede mover-se. Ondulou-se como um tapete pendurado e sovado com um pau. Depois simplesmente... ruiu. Feito água suja derramada de um balde, toneladas de areia cinzenta se espalharam pelo chão num jorro súbito, enterrando os pés de Elodin até as canelas.
A luz do sol e o canto dos pássaros inundaram o quarto. Onde antes houvera 30 centímetros de sólida rocha cinzenta havia agora um enorme buraco, tão grande que uma carroça poderia cruzá-lo.
Fico imaginando se Elodin não disse apenas “Quebre!” para a parede, como na história do Grande Taborlin que o próprio professor narrara instantes antes, quando Kvothe pergunta sobre como ele conseguiu fugir da primeira vez. Então o garoto, por algum motivo que eu desconheço, ouviu o verdadeiro nome do que quer que seja o material daquelas paredes.
O final é um contraste hilário com a história do Grande Taborlin. Elodin desafia Kvothe a pular do telhado. O garoto, recordando o desfecho de Taborlin e com a certeza de que Elodin deveria saber o nome do vento, apostou suas fichas que o mestre apararia sua queda antes que chegasse ao chão. Isso, claro, não aconteceu. Kvothe teve uma concussão, costelas quebradas e um ombro deslocado. Mas nem mesmo este acontecimento o fez desistir de Elodin: não tivesse o professor descartado o garoto em razão de sua loucura de ter aceitado o desafio, provavelmente Kvothe teria pedido para Elodin ser seu patrono, e não Kilvin.

Aqui Kvothe discorre brevemente sobre seu primeiro período letivo. Após o começo turbulento, as coisas foram bem. A amizade com Wil e Sim foi fortalecida, bem como o ódio entre Kvothe e Ambrose. Durante este mesmo período que o ruivo adquiriu o hábito de engrandecer os boatos que existiam sobre si, assim como inventou alguns outros e espalhou-os pela Universidade.
(...) Cheguei até a desencadear alguns boatos que eram um absurdo completo, mentiras tão escandalosas que as pessoas viriam fatalmente a repeti-las, a despeito de serem obviamente falsas: eu tinha sangue de demônio; conseguia enxergar no escuro; só dormia uma hora por noite; na lua cheia, falava durante o sono, numa língua estranha que ninguém conseguia entender.
Basil, meu ex-companheiro nos beliches do Cercado, ajudou-me a deflagrar esses boatos. Eu inventava as histórias, ele as contava a algumas pessoas e depois, juntos, nós as víamos espalhar-se como fogo na campina. Era um passatempo divertido.
Mas, entre todas as coisas que Kvothe menciona no capítulo, talvez a mais curiosa seja a observação que faz sobre Ambrose. Enfim a gente percebe que as coisas estão para ficar bem sérias entre os dois, e Kvothe entende porque tantas pessoas se admiram diante de sua atitude de enfrentar o estudante.
As pessoas notavam e, no fim do período letivo, eu já tinha a fama de uma bravura inconseqüente. Mas a verdade é que eu era apenas destemido.Há uma diferença, sabe? Em Tarbean, eu aprendera a conhecer o verdadeiro medo. Temia a fome, a pneumonia, os guardas com pregos de ferro nas botas, os garotos maiores com facas de vidro de garrafa. Enfrentar Ambrose não exigia nenhuma valentia real de minha parte. Eu simplesmente não conseguia sentir o menor medo dele. Para mim, ele era um palhaço empolado. Eu o considerava inofensivo. Fui um idiota.
Capítulo 48 – Interlúdio: um tipo diferente de silêncio
O título deste interlúdio revela o único temor de Bast. O capítulo 48 vê as coisas sob seu ponto de vista, e descobrimos que ele teme o silêncio que costuma envolver Kvothe às vezes. O trecho abaixo reafirma o que a gente já sabe – os dois estão juntos há apenas um ano – e evidencia, mais uma vez, o carinho que Bast nutre por Kvothe. É algo que vai além da relação mestre-aprendiz, e eu só fico mais curiosa para saber como isso tudo começou.
Do mesmo modo, Bast havia adquirido um novo medo nos últimos tempos. Um ano antes, era tão destemido quanto qualquer homem sensato poderia ter a esperança de ser, mas agora Bast temia o silêncio. Não o silêncio comum que vinha da simples ausência de coisas se movimentando e fazendo barulho. Ele temia o silêncio profundo e cansado que às vezes envolvia seu amo como uma mortalha invisível.
Kvothe introduz uma personagem que já havíamos conhecendo neste mesmo interlúdio. Sim, Denna. Ou de Devi. Sério, eu fiquei perdida. Ele fala de uma mulher como se fosse a última maravilha do mundo, extremamente delicada e digna de contemplação. Minha experiência no relacionamento entre Denna e Kvothe aponta que ele provavelmente estaria falando dela, mas quem surge logo em seguida é Devi. Assim você complica minha vida, rapaz. Porém, levando em conta que em algum momento do futuro Bast faz uma afirmação que nos induz a pensar que já viu Denna, então só pode ser Devi, pois Kvothe afirma que ambos os ouvintes ali nunca a viram.
― Deixe-me dizer uma coisa antes de começar. Já contei histórias no passado, pintei quadros com palavras, contei mentiras terríveis e verdades ainda piores. Certa vez toquei as cores para um cego. Passei sete horas tocando, mas, no fim, ele disse que conseguia vê-las: o verde, o vermelho e o dourado. Acho que aquilo foi mais fácil do que isto. Tentar fazer com que vocês a entendam, sem nada além de palavras. Vocês nunca a viram, nunca ouviram sua voz. Não têm como saber.
Capítulo 49 – A natureza das coisas selvagens
(...) Então, com lento cuidado, e não de maneira furtiva, devemos abordar o tema de uma certa mulher. Tamanha é sua impetuosidade que temo abordá-la apressadamente, mesmo numa história. Se agir com precipitação, posso assustar até mesmo a ideia dela, impelindo-a a uma fuga repentina.
Além dos parágrafos iniciais, com uma profundidade poética, o capítulo 49 mostra as razões que levaram Kvothe a procurar um “raspa-gusas”, ou um usurário. Mais precisamente uma usurária. A descrição apaixonada me levou a pensar que Kvothe estava falando de Denna, mas, pelo motivo que já expus, tenho quase certeza que é sobre Devi mesmo, também chamada de Devi Demônio. Vamos conhecê-la?
Capítulo 50 – Negociações
Devi é tudo o que Kvothe menos espera quando a encontra. Uma usurária pequena, de aparência angelical, com um sorriso descontraído. Quando ele a procura em Imre, após tanto tempo evitando a cidade conhecida como acolhedora de músicos e admiradores das artes, Kvothe se surpreende. A surpresa não se limita à aparência física da garota, mas também às suas condições de empréstimo: para concretizá-lo, é obrigado a dar três gotas do próprio sangue como garantia para a ex-membro do Arcanum.
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Devi. Arte por geying. |
O antigo Kvothe, aquele lá de Tarbean, tem uma desconfiança apurada de tudo e todos ao seu redor. Perfeitamente ciente das coisas que Devi poderia fazer de posse de seu sangue, ele se recusa veementemente a cumprir a condição. Claro, isso é perfeitamente racional.
Porém, depois que sai do apartamento de Devi, o garoto encontra uma loja com um alaúde velho em exposição. Qualquer traço racional que pudesse estar em sua mente é varrido para longe. Kvothe tem apenas dois talentos e dois iotas no bolso, quantia reservada para a sua taxa escolar do novo bimestre da Universidade. E é esse mesmo valor que ele induz o lojista a lhe vender o alaúde. Eu confesso que o compreendi.
Na aparência, eu segurava o alaúde com ar desprendido, descuidado. Mas, no fundo do coração, agarrava-o com uma ferocidade de branquear os nós dos dedos. Não espero que você compreenda. Quando mataram minha trupe, os membros do Chandriano destruíram cada pedaço de família e lar que eu havia conhecido. Mas, em certos aspectos, tinha sido pior quando o alaúde de meu pai fora quebrado em Tarbean. Tinha sido como perder um membro, um olho, um órgão vital. Sem minha música, eu passara anos vagando por Tarbean, semimorto, como um veterano aleijado ou uma alma penada.
Logo, Kvothe é obrigado a retornar a Devi e concretizar o empréstimo. Assim, o garoto deixa Imre e volta à Universidade com um alaúde para chamar de seu, quatro talentos inteiros que garantirão a taxa escolar e um beliche no Cercado, e menos três gotas de sangue, que agora estão na mão de uma garota conhecida, com certeza não muito carinhosamente, como Devi Demônio. Quanta merda pode acontecer, hein?
Falando um pouco sobre Devi, eu simplesmente amo essa personagem. Em muitos aspectos, ela me faz lembrar o próprio Kvothe, incluindo na aparência. Tão impetuosa e destemida quanto o ruivo, Devi é cativante ao seu modo, e uma competente ex-Arcanum e simpatista. Aposto que seu papel, já relevante desde O Nome do Vento, se mostrará ainda mais importante em As Portas de Pedra.
O que você achou desses dez capítulos? Quais suas teorias sobre Elodin, Devi e Ambrose? Será que a morte sobre a qual o Cronista fala quando reconhece Kvothe é a de Ambrose, diante da Eólica, em Imre?

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