Viver sem ler é perigoso.

O melhor vilão já criado - ou o que define um vilão inesquecível




Meu namorado passou mais de um ano tentando me convencer a assistir Hunter x Hunter. A verdade é que eu não sou exatamente o tipo de pessoa que assiste; eu sou mais do tipo que lê. Mesmo séries de que gosto muito, como Outlander, acabam abandonadas quando são longas demais. Perco o interesse e até esqueço que estava assistindo.

É por isso que para me fazer assistir algo, você precisa me amarrar na cama ou sofá e coordenar cada um dos episódios que passam na tela. Foi exatamente assim que começamos a assistir Hunter x Hunter: eu reclamando bastante e assistindo a contragosto porque duvidava que fosse acabar gostando. Nunca estive tão feliz em estar errada.

Veja bem, eu sou completamente apaixonada por livros e histórias de fantasia. Quando bem escritas, elas são capazes de transportar você para universos inteiros contidos em meras palavras. Eu realmente me desligo do mundo ao meu redor e enquanto meus olhos descansam nas páginas, não estou aqui. Estou vivendo outra vida, com outras preocupações e anseios. Quem não lê fantasia é ateu de magia – mas aqueles que leem sabem que ela existe. 

Imaginem a minha surpresa quando revivi essas emoções enquanto assistia a algo. A última vez que isso ocorreu foi mais de uma década atrás, quando a Disney ainda era capa de me encantar com suas histórias. De repente eu estava aqui, em pleno 2024, assistindo um anime e sedenta por mais episódios. De assistir a contragosto eu me tornei quem controla os episódios. Ontem terminamos de assistir os quatro últimos e descobri um novo tipo de ressaca, bem parecida com a literária, mas um pouco mais devastadora. Devastadora no nível “terminei O Temor do Sábio e agora preciso esperar anos aleatórios para acompanhar o que acontecerá depois” (quem sabe, sabe).


E é nesse contexto que introduzo, dentro do universo de Hunter x Hunter, o Arco das Formigas-Quimera. Quando meu namorado falou que estava ansioso para eu assistir logo esses episódios, eu já comecei a estranhar pelo nome. Não imaginei que seria deslumbrada com um enredo de tirar o fôlego, personagens incríveis e o melhor vilão já escrito e criado em uma história de fantasia.

Precisamos falar sobre Meruem.


É fácil falhar ao construir um vilão. 

A habilidade de construir um vilão memorável é rara. Criar do zero um personagem inesquecível e convincente é uma tarefa desenvolvida por poucos e apreciada por menos ainda - e isso podemos concluir ao ver tantos vilões medíocres ganhando espaço na cultura pop. 

São personagens sem profundidade, estagnados, com motivações fracas ou inconsistentes, rodeados de clichês e estereótipos, sem relações significativas e que geralmente ocupam o extremo oposto ao protagonista - sendo maus em totalidade, grotescos e inteiramente defeituosos.

É possível, porém, atentar-se aos detalhes e criar um antagonista multifacetado que contribua de fato com a trama - ou que, em certos aspectos, a eleve. Foi o que aconteceu em Hunter x Hunter.



Meruem é introduzido no anime como um personagem sádico e cruel, o exemplar mais perfeito, aquele que reúne em si todos os aspectos da própria raça num nível de excelência inalcançável pelos demais. Ele nasce “adulto”, com todas as suas vontades sendo realizadas de imediato, em um mundo lotado de pequenas criaturas - os tais seres humanos - que existem apenas para lhe satisfazer. Como uma formiga quimera praticamente recém-nascida, ainda que tenha em si muito da essência humana, Meruem é impassível e distante e suas crueldades deixam de ser cruéis quando você pensa que ele não sente nem pense nada quando as comete. 

Ele apenas existe para reinar sobre o mundo, não temendo adversários, e sem sequer imaginar que suas vontades não serão atendidas - em especial pelas três criaturas que compõem a Guarda Real, cujo único motivo para existir é proteger e servi-lo.

Se por um lado Hunter x Hunter me traumatizou “positivamente” com o final de Meruem, por outro também me traumatizou da pior forma possível criando o personagem Shaiapouf (à esquerda). Por Deus, nunca senti tanto ódio de um personagem fictício…


Considerando todos esses pontos, não é surpresa que Meruem tenha ficado tão envolvido com a única pessoa que não apenas não o temia, como não teve qualquer dificuldade em derrotá-lo no Gungi. E aqui estamos falando de Komugi, uma garota cega e uma das melhores jogadoras de Gungi do mundo.

Num primeiro momento, você pensa que Komugi é tudo o que Meruem não é: frágil, inocente e delicada. De fato, se você considerar o personagem no início de sua jornada, ele não parece muito com a garota. E é nesse processo de aproximação deles que vemos a (des)construção de Meruem.



Com Meruem tendo sido criado para governar o mundo, é compreensível que sua Guarda Real tenha sentimentos negativos pela garota cega que virou a protegida do rei. Eu poderia dizer que ela é responsável por mudá-lo, mas não acho que foi isso que aconteceu. O que de fato vimos ali foi uma armadura sendo quebrada. É irônico que um dos vilões mais difíceis de derrotar - que para tanto foi necessário o sacrifício de um dos mais poderosos Hunter existentes no universo do anime - fosse, em seu íntimo, tão vulnerável.

Komugi faz com que Meruem enxergue os seres humanos com outro olhar. De repente ele já não vê sentido em se portar como o antagonista da humanidade. Ele deseja, no fim, uma coexistência pacífica. Ele quer que Komugi fique bem ao seu lado. Ele quer desbravar o mundo e quem sabe deparar-se com outros seres humanos tão singulares quanto Komugi. Prova disso é que no último embate travado com Netero, ele por diversas vezes ignora seus ataques, tentando iniciar uma conversa civilizada. E Netero, o ser humano, de repente se torna a besta que Meruem deixou de ser no final. 


Um homem que se tornou um monstro para derrotar o monstro que se tornou humano. 

Toda essa evolução da jornada de Meruem é traçada de forma cuidadosa ao longo dos episódios. Não tem pressa, não é forçada: ela é tão singela quanto a relação entre Meruem e Komugi. Uma relação que em minha concepção está muito além de um relacionamento amoroso (sendo bem honesta, não vi sinais de que haveria ali uma intenção nesse sentido). Eu não consigo classificar o laço entre os dois porque foi a primeira vez que vi um amor tão puro e genuíno sendo retratado na ficção. Almas gêmeas, mesmo que de espécies diferentes, que nasceram para o momento em que partem juntos.

É isso tudo que torna Meruem tão inesquecível: a complexidade de sua evolução psicológica; a mudança cuidadosa do papel de vilão para o de anti-herói; a jornada que percorre ao longo dos episódios; suas motivações bem definidas (enquanto monstro e enquanto homem); e principalmente o impacto, interações e conflitos que tem com outros personagens - desde Komugi até o próprio núcleo protagonista. Ele não é descartável, ele não é indiferente, ele não é imutável; é Meruem. Não sei se vou me deparar novamente com um vilão tão bem feito no mundo fictício. A única certeza que carrego comigo é que ele, e sua relação com Komugi, ficarão para sempre marcados em meu coração.


Assistir o final da história dos dois foi tão traumatizante que fiquei sem reação. Meu namorado me chamou de insensível porque fiquei olhando para a tela sem esboçar nada. A verdade é que eu não estava aceitando aquilo acontecendo (e ainda não estou). É o melhor final possível para os dois, mas ainda me encontro em estado de negação.


Provavelmente vou começar a ler os mangás para não me sentir tão órfã de Hunter x Hunter. Não sei como vai ser a experiência; afinal, não sou do tipo que curte ler mangás. Mas eu estou em abstinência, e a única forma que tenho de superá-la é essa, então lá vamos nós. Volto para dar minhas impressões sobre a leitura.

Agora me digam vocês: o que acham de Meruem e de toda a sua trajetória?


Câmbio, desligo.

 

Você também pode gostar:

0 comments

Deixe aqui sua opinião!