Viver sem ler é perigoso.

Somos todos um homem ridículo? || Resenha do conto de Dostoiévski



Eu acho um tanto irônico o fato de que o autor que me colocou numa ressaca literária¹ em 2018 ser o mesmo que me fez voltar a escrever aqui no blog. Por isso, quase quatro anos depois da última atividade consistente por aqui, estou de volta. E para falar exatamente de O sonho de um homem ridículo, obra do (outrora) tão temido Fiódor Dostoiévski.

¹Ressaca literária é o termo utilizado para descrever uma "ressaca" pós-leitura de alguma obra que tenha impactado o leitor de tal forma que este não se recupera facilmente, podendo inclusive abandonar o hábito da leitura por algum período em decorrência da experiência.

No final de 2021, querendo aproveitar as várias promoções de fim de ano, incluindo uma na Amazon que me fez comprar o livro por R$ 25,00 (contra os R$ 69,90 de praxe),  acabei comprando esse título junto a um outro clássico, O Jardim Secreto. O livro é de dimensões pequenas, o que já me desanimou com a leitura, mas essa característica também foi providencial para me fazer lê-lo. Como poucos devem lembrar, tentei ler Os Irmãos Karamázovi em 2018 (e falhei miseravelmente), muito por conta da edição antiga e do volume da obra; no último sábado (22/01), encarei o livro na minha pilha de últimas aquisições e pensei "por que não? É tão pequeno", e foi aí que me entreguei a um mundo dostoievskiano do qual talvez jamais saia.



O projeto gráfico da Antofágica em si é uma obra de arte capaz de convencer qualquer um a tentar dar uma chance ao livro, tanto pela beleza exterior quanto pela diagramação interna. O verso da edição não dá muitas pistas sobre o que de fato acontecerá durante a leitura, mas acredito que nada poderia me preparar para aquilo que encontrei.

Sobre a obra 


Antes de entrar na obra em si, é necessário entender o seu contexto histórico. Escrito e publicado em 1877, antes de Irmãos Karamázovi, o conto representa uma fase mais tardia de Dostoiévski, quando passou a renegar com veemência o progressismo russo da época. Talvez por este motivo a obra seja diferente daquilo que eu buscava encontrar, pois apesar de trazer um assunto recorrente em seus escritos - o suicídio -, este foi um conto que finalizei envolta em uma atmosfera de esperança. De fato, aqui temos uma obra que continua evidenciando os aspectos negativos do ser humano, que é carregada de pessimismo do início à metade, mas que então dá uma guinada e resgata o protagonista do niilismo que quase o fez tirar a própria vida.

O homem ridículo é um jovem progressista burguês que seguiu toda a "receita" de como uma vida deve ser até o momento em que entra na faculdade. Ali, depara-se com a dimensão do quanto é ridículo e dedica-se à árdua tarefa de estudar cada vez mais, reforçando essa verdade incontestável.


"De maneira que, para mim, foi como se todo o meu estudo universitário só tivesse existido, no fim das contas, para me provar e explicar, à medida que me aprofundava nele, que eu era ridículo. (...) A cada ano, crescia e fortalecia-se dentro de mim aquela mesma consciência de meu aspecto ridículo em todos os sentidos."


Orgulhoso, o homem ridículo recusa-se a admitir sua característica a qualquer outra pessoa, mesmo aquelas que riem dele, convicto de que o único a saber essa realidade é ele mesmo. È o suficiente para colocá-lo em um estado de agonia extrema que deixa de ver sentido na vida, enxergando tudo ao seu redor com distância e indiferença, sem se importar com o presente ou o futuro, com suas ações ou as ações alheias, andando a esmo e sem rumo numa vida que não fazia questão de controlar.

Toda essa indiferença resultou numa decisão: o suicídio. Mas tudo lhe era tão alheio que nem mesmo quando cometer o ato parecia importar. E foi assim que adiou o momento derradeiro, até o dia em que decidiu que seria o último, e estava a caminho de casa quando deparou com uma garotinha chorando e implorando ajuda para a mãe, ignorando-a completamente.

Aqui logo se vê que o homem ridículo não é tão indiferente assim. Pois ao chegar em casa, determinado em atirar em si mesmo, o momento de puxar o gatilho é adiado pela lembrança insistente da criança chorando e o resquício de culpa que tenta infiltrar-se em seu coração. E apesar de não dormir direito há um ano, apesar de suas noites serem um tormento e nunca conseguir realmente ter paz, o homem ridículo fecha os olhos na poltrona em que decidiu tirar sua vida, revólver em punho, e resvala para um sono repentino.

Enquanto sonha, o homem ridículo atira em seu coração (diferente de onde estava planejando na vida real: em sua cabeça), e aqui cabe um parênteses para tentar entender o porquê da mudança. Devemos compreender que ele eliminou as próprias emoções? No caso, as emoções negativas que estavam dominando sua vida até aquele momento? A visão pessimista e niilista abolida durante o sonho, junto com a bala que entrou no peito e não em seu cérebro, sua razão?


O sonho


Ainda no sonho, após ter atirado em si, o homem ridículo entra numa espécie de viagem interdimensional em que é levado pela mão por alguém (ou algo) em direção à mesma estrela que tinha vislumbrado no mundo real, que havia lhe chamado atenção, e descobre que é uma versão melhorada da Terra. 

Neste outro mundo vivem seres humanos em estado de tão absoluta paz, prosperidade e harmonia que eles sequer falam uns com os outros, não havendo necessidade em fazer nada além de sorrir, celebrar e amar-se. Aqui não há divisão nem mesmo entre homem, animal e vegetal; todos vivem juntos, uma retratação do que seria o Paraíso, acredito eu.

O homem ridículo passa o tempo de uma humanidade inteira ali, convivendo com seus semelhantes tão desiguais da própria raça. Toda aquela felicidade e amor lhes são estranhos e desconhecidos, bem como o fato de não ser necessária a existência de uma ciência que os guie, porque são completos sozinhos e amam uns aos outros como a si mesmos. E após conviver tanto com eles, ainda incutido da perversidade da raça humana que conhecemos, ele começa a se questionar: como pode amá-los sem odiá-los de forma alguma? Pois o único amor que conhece envolve algum grau de dor.

É por essa razão que, assim como a Serpente, o homem ridículo leva a desgraça àqueles seres. Através de pequenas mentiras e ínfimas atitudes, o protagonista arruína tudo ao seu redor, destrói a harmonia e o amor sublime, apresentando-lhes o ódio, a inveja, o rancor, a perversão e a mentira. Quando percebe o que fez, ele sente-se terrível e tenta voltar atrás; tenta a todo custo fazê-los retornarem ao que eram, mas eles já não querem, e ameaçam interná-lo num hospício se continuar tentando. 

O homem ridículo não suporta ver a proporção da destruição provocada que implora que o crucifiquem, o que achei muito simbólico, mas ainda não tenho o conhecimento necessário para divagar um pouco mais sobre isso. Neste ponto, ele está tão angustiado quando no início do conto, mas se antes sua angústia se devia à falta de sentido da vida, agora era a tristeza por ter visto com os próprios olhos que a vida possuía sim um sentido - e que ele próprio fora responsável por retirar daquelas pessoas. Então o homem ridículo morre e retorna à realidade.



Quando retorna, ele já não é o mesmo. Conhecendo a verdade como mais ninguém, ele está determinado a pregar (mesmo que não saiba exatamente o quê). E é assim que temos o resgate de um quase-suicida, arrancado do niilismo e desesperado para que outras pessoas entendam a Verdade, vejam-na como ele, e assim consigam erigir o paraíso.

Minha opinião


O conto me trouxe uma série de reflexões filosóficas e mesmo religiosas, sendo estes dois aspectos da minha vida que costumo negligenciar. Fiquei sem palavras ao finalizar, especialmente porque muitos dos questionamentos feitos pelo protagonista no início do livro foram perguntas que eu mesma me fiz um dia. Então vê-lo resgatar a esperança através da fé, apesar de ele mesmo não saber determinar em quê, me fez também ter esperança. É curioso como uma escrita pode ser capaz de nos inserir tanto em seu contexto, a ponto de mudar as nossas próprias concepções acerca da vida, impactando em nossas escolhas e em como enxergamos o mundo.

A edição é linda, cheia de ilustrações que combinam com a atmosfera onírica do conto, e a tradução me pareceu excelente - até porque a única coisa que posso dizer é que entendi muito bem o livro e não tenho ideia se foi uma "boa tradução", afinal, o russo ainda não está em dia por aqui.

É um livro pequeno, de pouquíssimas páginas, que eu recomendo muito para quem quer iniciar Dostoiévski - ou mesmo para aqueles que já o conhecem mas ainda não deram a devida atenção à obra. Podem ler, garanto que não se arrependerão; eu estarei os esperando aqui nos comentários pra gente conversar sobre o impacto da obra em suas vidas, combinado?



  Título: O sonho de um homem ridículo
  Autor: Fiódor Dostoiévski
  Ano de publicação original: 1877
  Editora/Tradução/Ilustração: Antofágica, Lucas Simone e Helena Obersteiner
  Páginas: 240
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