Viver sem ler é perigoso.

It: A Coisa || Um livro pesado para uma história pesada


Antes de tudo, vamos comentar o paradoxo de eu abordar o aspecto pesado (literalmente falando) de It: A Coisa, sendo que li em e-book. É, eu sei, é meio contraditório, mas tive a oportunidade de lê-lo na versão física quando fui a uma livraria da minha cidade, em que você pode escolher um livro, sentar numa poltrona e passar horas a fio imerso na leitura sem pagar nada por isso. Então mesmo que tenha sido breve, eu tive contato com a edição em si e fiquei muito feliz por não precisar ficar carregando-a por aí.

Uma postagem sobre It: A Coisa foi algo que eu cogitei, durante muito tempo, simplesmente não fazer. Por que escrever mais um texto que ficaria perdido entre tantos outros nesse mundo literário online? As pessoas precisam mesmo de mais uma resenha de It?, eu perguntei a mim mesma – e a alguns amigos e leitores do Me Livrando. A resposta que me dei foi não, mas movida pelo incentivo do segundo grupo (“Escreva a sua opinião!”), aqui estou.
E a primeira coisa que eu gostaria de falar sobre It é o quanto o livro é pesado. Em todos os sentidos. As mais de mil páginas que compõem a obra-prima do medo são difíceis, por si só, de sustentar numa edição física; carregá-lo para cima e para baixo é um baita desafio. Acho que essa foi a primeira vez que entendi o amor das pessoas por e-books, aos quais eu terminantemente me recusava a ceder. Agora sou uma adepta, mas porque entre idas e vindas da faculdade com um Vade Mecum debaixo dos braços (ô bichinho pesado da desgraça!), ter It no leitor digital do celular se mostrou essencial.


Li em algum site, há um tempo atrás antes de começar a ler o livro, que o autor do artigo gostava de pensar que Stephen King havia escrito It com tantas páginas de forma proposital (além da razão óbvia). Quem sabe ele não quisesse que carregar o livro fosse tão difícil quanto lê-lo? O que a gente menos espera antes de virar a primeira página é que a leitura será incômoda muito menos em razão do tamanho e peso da obra do que do seu conteúdo em si.
It traz uma série de temas que estamos acostumados a lidar todos os dias, de forma infeliz e corriqueira. Especialmente morando no Brasil, onde a morte e violência se tornaram tão habituais que nos tornamos insensíveis diante da maioria. Pennywise decide infernizar Derry, uma cidadezinha do Maine, mas eu fico aqui imaginando o que ele teria de fazer para conseguir infernizar o Rio de Janeiro ou mesmo Belém, minha cidade. Boa sorte, Penny.

O que é uma entidade cósmica perto de toda essa barra que o Brasil tá segurando, hein?

Eu acho que se fosse utilizar uma palavra para descrever de forma geral minha experiência de leitura com It, seria nojo. Nojo das situações enfrentadas por Beverly Marsh com o padrasto asqueroso e mais tarde, com o marido abusivo; nojo da descrição vívida das mortes dolorosas de crianças e adultos; nojo de algumas das crianças em si (Patrick e Henry Bowers que o digam); nojo do racismo vivido pela família de Mike Hanlon... Nossa. É muita coisa pela qual sentir asco durante a leitura desse livro. Imagine a pior espécime de ser humano a pisar na Terra em determinada categoria. Você provavelmente terá um representante no elenco secundário de It: A Coisa. E de forma mais ampla, terá todos eles juntos reunidos na figura de Pennywise, o Palhaço Dançarino Assassino. 
Aliás, abro aqui parênteses para falar do famoso alarde que sempre se faz sobre Stephen King ter escrito esta obra sob o efeito de drogas. Não estou dizendo aqui que é verdade ou mentira; não sei de onde surgiu o comentário, se pela boca do próprio King, e não pesquisei a respeito porque não acho que faça diferença para essa resenha ou mesmo para a minha leitura. Mas não duvido que ele de fato tenha rascunhado algumas cenas estando um pouquinho alto. O livro todo é genial – mas como tudo que é genial, não está isento de ter defeitos. Algumas das soluções bizarras encontradas por King soam cômicas demais e até retiraram um pouco do medo que deveria permear cada página de It (o Ritual de Chüd por si só é uma delas, e a cena em que o Clube dos Otários vê Pennywise chegando a Terra milhares de anos atrás, numa cena que não faria diferença se não estivesse ali, porque não tem nada de extraordinário e que não pudesse ter sido dito lá no final no meio do diálogo entre Penny e um personagem aí).

Ritual of Chud by monstah
Eis o Ritual de Chüd (e na verdade ele é um pouquinho mais bizarro do que parece aí). Créditos.

Em contrapartida, alguns parágrafos, especialmente aqueles que descreviam os assassinatos perpetrados por Pennywise, eram tão vívidos que eu não duvidaria se King admitisse que havia acabado de cometê-los pessoalmente para conseguir descrição tão precisamente aterradora. Alguns momentos melosos demais (veja bem, não precisa ser romance para ser meloso) entre o Clube dos Otários, especialmente no decorrer de 1985, quando todos já estão adultos, se tornaram até necessários para aliviar um pouquinho do sangue a pingar de cada página da obra. A relação entre os protagonistas, aliás, é realmente bonita – o tipo de amizade em que todos, individualmente, estão quebrados em mil pedacinhos com seus próprios dilemas e desafios, mas que quando se juntam, parecem um só.
Infelizmente isso de parecer um só se torna muito literal ao fim do primeiro confronto com a Coisa, quando as crianças decidem realizar uma orgia para quem sabe assim “reativar” o modo amizade e poder encontrar o caminho de volta pra casa através dos esgotos. Não, não faz sentido. Talvez King de fato estivesse sob o efeito de drogas enquanto escrevia...

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Aliás, uma das partes mais interessantes do livro envolve Mike Hanlon e seu pai. Gente, que histórias assustadoras que o pai do garoto reserva para contar-lhe; mais assustadoras, talvez, que as próprias mortes em si, porque você entende todo o background do que ocorre em Derry. A maldade parece estar entranhada naquelas terras, e por isso não é muito difícil imaginar a razão de todos fazerem vistas grossas quando a entidade chamada Pennywise decide colocar as mãos na massa, seja através de sua interferência direta ou influenciando outras pessoas. Todas essas histórias vão sendo relembradas por Mike quando, vinte e sete anos depois, ele é o único do Clube dos Otários a permanecer em Derry, e é o único cujas ações parecem nunca ter deixado de ser guiadas pela Tartaruga, que é a inimiga natural de Pennywise e escolheu as crianças a dedo para que derrotassem a criatura. Não é lá o tipo de escolha em que você gostaria de ser incluído... 

“Antes do universo, só havia duas coisas. Uma era a própria Coisa e a outra era a Tartaruga. A Tartaruga era uma coisa velha e idiota que nunca saía do casco. A Coisa achava que talvez a Tartaruga estivesse morta, tivesse morrido há um bilhão de anos mais ou menos. Mesmo se não estivesse, era uma coisa velha e idiota, e mesmo que a Tartaruga tivesse vomitado o universo inteiro, isso não mudava sua idiotice.”

Enfim. Você provavelmente deve ter assistido ao filme, seja a adaptação antiga ou a mais recente. O que eu tenho a dizer para você é que aquilo é o livro – aquilo e, ao mesmo tempo, muito mais. Ler a obra que inspirou a adaptação é sempre uma experiência recomendável e, ao meu ver, necessária. Dessa vez não é diferente, porém é um daqueles casos em que eu recomendo você a pensar duas vezes. A escrita de King, durante a maior parte do livro, certamente é boa – a grande questão é que algumas partes da obra não são tão necessárias assim e deixam-no num volume que não precisava ser tão imenso. O próprio King notou isso: conforme observado por um site gringo (cujo link infelizmente perdi), em It – A Coisa ele mesmo deixa de seguir conselhos que deu em Sobre A Escrita. Sim, tem muito a ver com a maturidade do autor e evolução de sua narrativa, e pelo menos cria aquele efeito de tornar o livro tão pesado quanto o conteúdo que ele traz, né?
O que importa é que Stephen King, a despeito do modo como orquestrou os acontecimentos e organizou-os, criou uma obra magistral. As crianças têm tanta profundidade que é possível perder-se dentro delas. Cada medo, cada situação de desespero, cada acontecimento pessoal e traumatizante vivido por elas está descrito no livro e a imersão no que estão passando é total. O confronto com Pennywise, em alguns momentos, se torna brincadeira de criança perto de muitas coisas que elas enfrentam no âmbito individual. Ponto para King, que conseguiu fazer essa obra ganhar espaço entre meus favoritos, mesmo que não seja o melhor livro que já li, e conseguiu mais uma leitora para suas inúmeras obras.



Frases marcantes do livro

“Um exemplo perfeito de como a Câmara do Comércio vai tentar reescrever a história, Mike (...) Vão tentar, e às vezes quase conseguem... mas as pessoas velhas se lembram de como as coisas realmente aconteceram. Elas sempre se lembram. E às vezes elas contam, se você perguntar direito.”

“Só quero contar mais uma coisa, e acho que você não vai entender, porque não sei se eu entendo. O que aconteceu naquela noite no Black Spot, por pior que tenha sido... Não acho que tenha acontecido porque éramos negros. Nem porque o Spot ficava perto da West Broadway, onde os brancos ricos de Derry moravam e ainda moram hoje. Não acho que a Legião da Decência Branca tenha crescido tão bem aqui porque os integrantes odiavam os negros e os vagabundos com mais intensidade em Derry do que em Portland ou Lewiston ou Brunswick. É por causa do solo. Parece que coisas ruins, coisas cruéis, se dão bem no solo desta cidade. Pensei nisso várias vezes ao longo dos anos. Não sei por que é assim... mas é.”

“(...) Acho que é no livro O Senhor dos Anéis que um dos personagens diz que ‘um caminho leva a outro’; que você podia começar em um caminho que levava a um lugar tão fantástico quanto os degraus da sua casa que levavam à calçada e de lá você podia seguir... bem, para qualquer lugar. É igual com histórias. Uma leva a outra, a outra e a outra; talvez elas sigam na direção que você pretendia, e talvez não. Talvez no final seja a voz que conta a história que importa mais do que as próprias histórias.”

“Ninguém que morre em Derry morre de verdade.”

“A ideia de um monstro, um monstro enorme, escondido debaixo da cidade em que ele nasceu e cresceu, usando os esgotos e bueiros para se deslocar de um lugar para o outro, era uma ideia bem apavorante, e a ideia de lutar contra essa criatura, de encará-la, era ainda mais apavorante... mas, de alguma forma, isso era pior. Como você podia lutar contra um adulto que dizia que não ia doer quando você sabia que ia? Como você podia lutar contra um adulto que fazia perguntas esquisitas e dizia coisas obscuras e sinistras como Isso já está indo longe demais? (...) E, quase sem querer, em uma espécie de pensamento paralelo, Eddie descobriu uma das grandes verdades de sua infância. Os adultos são os verdadeiros monstros, pensou ele.”

“Talvez não existam coisas como amigos bons ou ruins. Talvez existam só amigos, pessoas que ficam ao seu lado quando você se machuca e que ajudam você a não se sentir muito sozinho. Talvez valha a pena sentir medo por eles, sentir esperança por eles e viver por eles. Talvez valha a pena morrer por eles também, se chegar a isso. Não amigos bons. Não amigos ruins. Só pessoas com quem você quer e precisa estar; pessoas que constroem casas no seu coração.”

“Por que nos chamar de volta? Por que não nos deixar morrer? Porque quase matamos a Coisa, porque botamos medo na Coisa, eu acho. Porque a Coisa quer vingança.”

“(...) a Coisa existia em um ciclo simples de acordar para comer e dormir para sonhar. Ela criou um local em sua própria imagem, e olhava para esse lugar com carinho pelos postigos que eram seus olhos. Derry era seu abatedouro, as pessoas de Derry eram as ovelhas.”

“(...) Mas juntos eles descobriram um segredo alarmante do qual nem a Coisa sabia: aquela crença tem um outro lado. Se houver 10 mil camponeses medievais que criam vampiros por acreditarem que eles são reais, pode ser que haja um, provavelmente uma criança, que vai imaginar a estaca necessária para mata-los. Mas uma estaca é apenas madeira idiota; a mente é o martelo que a enfia no lugar certo.”

“— sou a Tartaruga, filho. eu fiz o universo, mas não me culpe por ele; eu estava com dor de barriga.”



  Título: It: A Coisa (It)
  Autor: Stephen King
  Editora/Tradução: Suma de Letras/Regiane Winarski
  Páginas: 1104
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