Viver sem ler é perigoso.

Resenha || Ultra Carnem de Cesar Bravo


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  Título do Livro: Ultra Carnem
  Autor: Cesar Bravo
  Editora/Tradução: DarkSide Books
  Páginas: 384
  Ano de Publicação: 2016
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  Livro cedido em parceria com a editora.
  
Sinopse Ultra Carnem expande em muito a mitologia criada por Cesar Bravo, dando detalhes assustadores sobre a infância e a obra maldita de Wladimir Lester, o estranho menino pintor. Além disso, o autor mostra até onde vai a fome de um homem desesperado pela fama ou por uma vida mais digna por direito. A caminhada segue sem pudores expondo a fragilidade de cada um de nós. Por fim, o leitor fica com a sensação de que nós, humanos, não devemos bancar o esperto. E que não existe a possibilidade de enganarmos o céu e o inferno.

Ultra Carnem foi uma das minhas últimas leituras de 2016. Uma obra que despretensiosamente acaba por conquistá-lo. Primeiro através de um garotinho, a quem você se apega e sente pena, até que chega ao final com um conto que deixa a gente sedento por mais.
Todas as histórias, embora diferentes, são interligadas, de modo que para entender e se situar melhor nos acontecimentos, você deve ter lido o conto anterior. Os protagonistas são Wladimir Lester, Nôa, Marcos Cantão e Lucrécia, além do próprio Lúcifer. Todos residem em Três Rios e pouca coisa têm em comum, senão o fato de terem topado com o profano e o obscuro em algum momento de suas vidas.


Wladimir Lester é quem dá início a tudo – sua existência e suas ações são cruciais para o desenrolar do enredo de cada conto. Ele, um garoto cigano, é levado à porta do casarão onde Dom Giordano acolhia crianças órfãs. A senhora que o acompanha diz que ninguém de seu grupo o quer por perto, e se o padre não o aceitasse, provavelmente seria assassinado. Tudo o que nós, leitores, vemos, é uma criança rejeitada com um passado sombrio e um verdadeiro apreço pelo tubinho de tinta que carrega na mão fechada. O pavor dos ciganos em relação ao pequeno Lester é totalmente justificado, mas isso descobrimos depois. Tudo o que posso dizer é que o preço a ser pago no final do conto é alto demais para todos os envolvidos.
“– Onde posso encontrá-la? Caso aconteça alguma coisa com o menino... Ou pode me dar o endereço dos pais verdadeiros, se não se importar em dizer.
– Você não me encontra. A mim ou ao meu povo. Meus pais também estão longe dessa cidade, no lugar onde o menino os colocou. – Ela já estava virando a maçaneta, apressada em seguir seu caminho.
– Por favor, me diga onde estão!

Iolanda parou de caminhar. Olhou para o teto do casarão e disse, ainda de costas:

– No Inferno, padre. No Inferno.”


A partir daqui, há um imenso salto temporal em relação às histórias posteriores. A primeira parte, Abandonado, passa-se num tempo em que “bestas movidas a gasolina começavam a aparecer e causar os primeiros acidentes, enquanto substituíam as velhas carroças enferrujadas que circulavam pelo centro”. Já as partes seguintes são contemporâneas, pois você vislumbra referências ao que conhecemos o tempo todo, inclusive, por exemplo, ao bater de panelas no Brasil em 2015.
“Na disputa entre o céu e o inferno, nós somos o prato principal.”

O próximo conto, Gênesis, nos apresenta Nôa, um pintor fracassado que deseja apenas viver de sua maior paixão – a pintura. Porém, sua vida segue de mal a pior e a esperança surge apenas quando ele furta um diário de uma loja de antiguidades. Supostamente pertencente a um parente distante de Wladimir Lester, a lenda de Três Rios, Nôa encontra no livro relatos do poder do garoto, incluindo seu tubinho de tinta milagroso. Essa, então, passa a ser a via crucis do pintor: encontrar aquela tinta, pintar quadros incríveis e ficar famoso pelo resto da vida, além de encontrar os quadros originais de Lester, que possuem um valor inestimável. Assim, seguindo as pistas e menções do diário, além de receber ajuda de um parceiro improvável, Nôa acaba encontrando o que tanto buscava – embora com certeza tenha se arrependido no final. O pintor, assim como o próprio Wladimir Lester, é a representação pura da cobiça e da ambição, e não se importa em tirar do caminho todos aqueles que o impedirem de chegar ao seu objetivo final.
Você nunca encontra o que procura. O tempo come tudo, Nôa. Roupas, valores, devora inclusive a esperança de nos entendermos com o passado. O que aconteceu com o tal menino e com as outras pessoas desse livro é algo que não pertence a nós. E você não precisa me dizer o que o trouxe aqui. Chamo isso de ganância, também de ilusão e de irresponsabilidade. Estamos na era das luzes, filho. Não existe mais espaço no mundo para o obscurantismo.



O Pagamento é o terceiro conto e é protagonizado por Marcos Cantão. Toda a história é narrada da perspectiva dele, e acho no mínimo equivocadas as críticas suscitadas em relação a Cesar Bravo, que foi apontado como misógino. Veja bem: Marcos é um homem miserável, que talvez só se torne menos terrível por conta do belo sentimento que nutre em relação ao filho especial. Ele é técnico de informática e o pouco dinheiro que ganha mal é capaz de sustentar a família e os remédios de seu garoto. Marcos está infeliz e insatisfeito, tão amargurado com a vida que seus pensamentos se resumem a maldizer a esposa, chamando-a de gorda e imunda, transar com a filha de um dos clientes, que classifica como gostosona, e passar a perna em quantas pessoas puder... Seus pensamentos são bem condizentes com o tipo de homem quem é, e não acredito que culpar o autor pela conduta coerente do personagem seja justo. Enfim, Marcos é chamado para um serviço na loja O Estranho e o Mágico: Produtos Raros, da dona Sofia, e se depara com a estátua da Ciganinha, que fez sua primeira aparição com Wladimir Lester e lhe era querida acima de tudo. Será que adiantaria fazer um pedido à figura, como dona Sofia o estava instigando a fazer? Marcos decide arriscar e tudo muda, e sua vida de repente é como sempre sonhou. O que ele não sabe – ou finge não saber –, porém, é que nada é de graça.
Temos o quarto conto, O Inferno, cuja protagonista é uma garçonete desgraçada na vida chamada Lucrécia. Sem querer, ela acaba ouvindo a conversa do próprio Lúcifer e seus asseclas dentro do estabelecimento onde trabalha. Eles descobrem-na ouvindo e oferecem duas opções: pode ser morta ou aceitar trabalhar com eles. É provavelmente o melhor conto de todos, pois explora toda a concepção de inferno para Cesar Bravo nesse seu mundo fictício. O último conto, Os Três Reinos, é tão interessante quanto O Inferno, sendo uma espécie de continuação do terceiro. Ele reúne todos os protagonistas anteriores, atribuindo papéis a cada um deles, e você de repente vê que se encaixaram bem no Inferno, como se tivessem nascido para estar ali.
O final do livro como um todo nos apresenta uma Lucrécia bem desenvolvida e que assume as rédeas da própria vida – ou seria desvida? Porque morta ela não está, mas se tornou uma peça importante para o Inferno em sua missão de arrebanhar cada vez mais almas.


A narração de Cesar Bravo é muito boa. Ele descreve o que precisa ser descrito, mas não se perde em detalhes desnecessários. Coloca no livro o que você precisa saber – e até algumas coisas que você não precisaria, mas acabam sendo interessantes. Talvez peque no excesso de diálogos, mas isso não maculou a obra de modo geral. Eu não sei se foi por conta da época em que li o livro (período de provas finais), mas demorei demais para finalizá-lo e num momento confesso que me senti “cansada”. Foi só iniciar a leitura do segundo conto que tudo mudou. Em O Pagamento, temos toda uma pegada gore e o pior lado do ser humano sendo exibido, aquele que pessoas perversas assumem quando há a certeza de que ninguém está olhando. Já em O Inferno e Os Três Reinos, temos a premissa do que poderia ser uma incrível saga de tirar o fôlego. Eu ficaria mais do que contente em ler uma série de livros em que Lucrécia fosse a protagonista e mostrasse todo o seu trabalho no submundo, além de conhecer melhor esse Inferno proposto por Bravo. Ele misturou de tudo um pouco: além das referências cristãs, há também um pouco de Dante e até da mitologia greco-romana. Achei isso demais. Gosto de todos isoladamente, mas não imaginava que combinados poderiam dar origem a algo tão interessante.
Enfim, Ultra Carnem não é um livro que irá deixá-lo sem sono por medo – talvez o deixe sem sono porque você, a partir de Marcos Cantão, não conseguirá largar as páginas. Recomendo para quem gosta desse tipo de literatura, mas não posso confirmar se leitores que não estão acostumados gostarão logo de cara. Eu, por exemplo, não estou acostumada – mas já fui fisgada por conta do sangue, da dor, da morte. São curiosidades inatas aos humanos, certo? Então posso dizer que você deve tentar ler. E correr para me contar o que achou da experiência depois.

Ouça a playlist do livro!



Eu tive uma discussão com um cara uma vez. E ele me disse que eu não poderia vencê-lo em uma disputa justa. Bom… Tudo se resume a isso. Ele sequestra pelo amor e eu pelo favor; a dor, nós dois usamos. E olha que eu vinha ganhando fácil há muito tempo, mas essa porcaria de internet… Mulher, isso acabou comigo. Agora todo mundo conhece tudo, lê tudo e desacredita em tudo. Nem eu ou Ele – apontou para cima – valemos muita coisa se não acreditarem em nós. Talvez precisamos rever todo esse nosso negócio, mas quer saber? Eu ainda pretendo ganhar essa aposta… E quando ganhar, vou provar quem é quem no mundo.




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