Viver sem ler é perigoso.

Taverna 01: Thorn Punho de Ferro


Oi, pessoal. Tudo bem? Aqui é a Celly. Hoje não estou aqui para trazer uma resenha ou novidades, nem mesmo para anunciar parceria com os nossos dezessete incríveis autores  (coisa que eu já deveria ter feito, mas pela quantidade vocês já devem imaginar que terei de fazer tudo com minúcia para que as coisas saiam à altura desses escritores maravilhosos que aceitaram parceria com o MeL ou vieram até nós). Não, hoje estou aqui para trazer-lhes um conto. O primeiro que tenho coragem de divulgar assim, para todos lerem, por incentivo do meu namorado (obrigada, amor ). O primeiro que eu sujeito às críticas de vocês e aguardo ansiosamente pelo que terão a dizer. Eu espero, do fundo do meu coração, que gostem. E espero também que, caso não gostem, o digam.





Os antigos adoravam narrar estórias fantasiosas, isso não era nenhum segredo. Thorn adorava ouvi-las todas, especialmente a de Thorn Punho de Ferro – o mesmo herói que havia lhe emprestado o nome – e sua espada, a Lâmina das Sombras. Tratava-se da narrativa mais fantástica que já ouvira, e o enchia de uma esperança desesperada de ser alguém acima do simples aprendiz de curtidor que de fato era. Talvez um dia fosse como o Thorn das histórias: destemido e ousado, um bravo cavaleiro e em seguida rei que encheria de orgulho todos os súditos que a ele tivessem de se curvar. Talvez, ao eleger aquele nome como o de seu único filho, a mãe estivesse na verdade prevendo um futuro não muito distante fadado a seguir os mesmos trilhos da famosa narrativa. Thorn apegava-se a essa forte crença como os homens agarravam-se aos deuses em momentos de desespero e extrema necessidade, implorando- lhes conquistas e vitórias em batalhas há muito perdidas.
Além da estória de Thorn Punho de Ferro, o garoto também adorava ouvir as narrativas das mulheres das sombras. Apesar de enchê-lo de arrepios e temores, especialmente ao cair da noite, nada lhe dava mais prazer e excitação do que ouvi-las. A velha estalajadeira costumava recomendar: “Não fique acordado durante as horas que precedem o amanhecer, criança. É a hora em que as trevas caminham sobre o mundo...” Tudo soava mais sinistro na voz asmática da velha. O sorriso desdentado, a pele enrugada e o olhar perscrutante em nada ajudavam a amenizar a imagem de bruxa que a estalajadeira tinha. Após um acesso pavoroso de tosse, ela retomava: “Mas se não puder evitá-lo, tenha a certeza de jamais olhar pela janela... Nunca se sabe quem está andando pela rua a essas horas, e se avistar uma mulher das sombras, saiba que você não tardará a deixar este mundo”. As crianças olhavam entre si com sorrisos hesitantes em expressões de suposta confiança, rindo com arrogância por fora mas já planejando a noite que dormiriam com os pais por dentro.
Havia um sinal que as identificava, apenas um: o odor. Um cheiro azedo que diziam jamais abandonar sua lembrança. Se as mulheres da sombra avistassem-no, elas gritavam uma vez. Se você ouvisse não haveria mais nada que pudesse fazer para salvá-lo.
Os antigos adoravam narrar estórias fantasiosas, Thorn tornou a pensar... E aquela que mais lhe enchia de terror parecia estar tornando-se realidade.
O garoto ouvia gritos, muitos gritos. Eram estridentes, ensurdecedores e agoniantes, lhe enviando um frio que seguia desde a base de sua nuca até o fim da coluna. Aquele odor nauseante, uma mistura de sangue, carne podre, morte e suor, impregnara em suas narinas e não parecia querer deixá-lo. Ele estava enjoado e ânsias de vômito subia-lhe à boca a todo instante. Viu-se rodeado de mulheres envoltas em uma capa cinza que, se observadas de determinado ângulo, possuíam belos rostos e corpos esguios, com cabelos longos e negros chegando-lhes à cintura – mas quando observadas de outro não passavam de imitações humanoides de mulheres, altas e com o corpo coberto de penas negras, lábios podres repletos de dentes afiados como adagas e manchados de podridão e sangue, um par de órbitas vazias a fixá-lo e garras no lugar dos dedos. Corvos voavam ao redor de sua cabeça, crocitando sem parar, e de repente começaram a atacar Thorn, bicando furiosamente qualquer pedaço de pele exposta. O garoto berrou de dor, mas seus berros jamais seriam ouvidos, pois estavam encobertos pelos gritos estridentes das mulheres das sombras que dançavam ao seu redor. Com uma forte pancada na nuca, Thorn abandonou seus devaneios e voltou à realidade... Mas quão pior ela podia ser do que aquele tormento das criaturas de seus pesadelos?


Ele estava de volta ao campo de batalha. A guerra ainda não terminara. Imobilizado debaixo da carcaça de Corcel, um nome irônico para sua magra montaria, estava tão fraco que sequer conseguiria sair dali nem se estivesse desimpedido. Seu braço esquerdo estava torcido em um ângulo estranho e movê-lo demandava intensa agonia, mas o direito tinha apenas o polegar quebrado – o que, na conjectura atual, não era tão ruim. Thorn tentou utilizar os quatro dedos bons para arrastar-se pela grama, mas não obteve sucesso. Logo um vulto negro – talvez um corcel verdadeiro – saltou por cima da carcaça de seu cavalo e esmagou-lhe a palma que estava estendida. O garoto urrou com a dor de quatro dedos esmagados e sua visão embaçou momentaneamente. Viu de relance sua espada toscamente forjada atirada ao chão a uma flechada e meia de distância, absolutamente inútil – assim como o próprio Thorn.
Lembrou-se brevemente da convocatória dos soldados do rei. Mais uma guerra estava a caminho e todos os garotos acima de treze anos estavam sendo recrutados. Para o azar de Thorn, ele atingira a idade mínima no dia anterior. Sua mãe derramara lágrimas e mais lágrimas, e os soluços provocaram tremores pelo corpo raquítico cujos braços calorosos Thorn talvez jamais sentisse ao seu redor novamente. O pai lhe dera tapinhas no ombro e dissera que aquilo tinha de ser feito. Não fosse o acidente que roubara sua visão dez anos antes, ele também seria recrutado para a guerra. Mas o infortúnio trouxera-lhe a mesma medida de sorte e azar – ao passo que não estava permitido a tomar posição em quaisquer batalhas, teria de presenciar o único filho indo para uma da qual havia possibilidade de nunca retornar...
Apenas quando acordou pela terceira ou quarta vez Thorn descobriu que havia desmaiado novamente. Ainda imobilizado debaixo da carcaça de Corcel, que começava a soltar um odor asqueroso, tudo o que podia ouvir era o crocitar dos corvos que começavam a se banquetear nos cadáveres, além dos lamentos de homens e cavalos moribundos – lamentos estes que por um momento fizeram-no recordar das mulheres das sombras: presságios de morte iminente. Se fosse capaz, provavelmente também uniria sua voz ao último eco daqueles guerreiros, mas estava tão fraco que até respirar lhe custava muito.
Um corvo pousou sob o cadáver de Corcel e começou a lhe bicar o olho direito. O garoto fechou os olhos com força, não querendo presenciar aquela cena repugnante. Até mesmo mover os músculos da face lhe trazia uma dor considerável. Esquecendo-se temporariamente da situação do braço esquerdo, tentou erguê-lo abruptamente, mas uma pontada aguda de dor o invadiu – mais uma vez, embalado pela dor, caiu na inconsciência.
Dessa vez seus sonhos foram repletos de flashes da batalha. Reviveu os momentos que mais queria esquecer. A primeira fileira a sair foi a da vanguarda, aquela da qual Thorn fazia parte. Enfrentaram o exército adversário em campo aberto e ali, diante de seus olhos, o garoto viu morrer a maior parte das pessoas com quem fizera amizade na semana anterior durante o breve treinamento. Um soldado inimigo enfiou uma lança no queixo de Kevin e esta projetou-se para fora de seu crânio, saindo pelo topo da cabeça de cabelos negros e encaracolados. Thorn conhecia Kevin. Ele tinha apenas dezesseis anos e era um simples agricultor quando fora recrutado. Tivera apenas uma semana de lições de combate, assim como a maioria dos outros jovens, e isso de longe foi suficiente para que aprendesse sequer a segurar uma espada decentemente. Thorn ficou imóvel ali, observando seu mais novo amigo morrer, e esse foi seu maior erro.
As pessoas contavam histórias sobre guerras e batalhas... Mas jamais descreviam o horror que era participar de uma. Aquela era apenas a primeira parte, os primeiros minutos, e Thorn não conseguia se mover, abandonado e esvaído de toda a coragem que um dia tivera: a boca semiaberta, o olhar repleto de pavor, a mão que empunhava a espada tremendo. Um alvo fácil – ele tinha a leve consciência disso, enquanto os soldados inimigos tinham certeza, pois logo um deles avançou sobre Corcel com uma lança na mão. A arma letal e reluzente na ponta apontava diretamente para o coração de Thorn, mas por algum motivo Corcel empinara-se momentos antes do choque – e então a lança penetrou no peito do animal, rasgando a carne e quebrando dentro de seu corpo magro, que tombou no chão sobre Thorn. O garoto não pôde fazer nada, exceto ver Corcel lamentar-se em sua dor, espumando sangue até que finalmente silenciou e parou de debater-se. O soldado inimigo há muito havia partido, ou talvez tivesse caído com o impacto da colisão... E assim chegara ao fim a breve participação de Thorn em uma batalha real.
Acordou novamente. Thorn no mesmo momento teve a consciência de que estava de volta ao campo banhado em sangue da batalha. Dessa vez não conseguiu abrir os olhos ou fazer qualquer outro movimento. Sentia seu peito descer e subir muito lentamente à mesma proporção de sua respiração. Respirar estava minguando todas as suas forças... Ele sabia que não duraria muito. Seu peito ardia como se estivesse em chamas e o simples ato de sugar o ar lhe trazia uma dor indescritível, tornando todas as outras dores secundárias. Aquele odor de sangue e morte parecia intensificar-se a cada segundo.
- É apenas um garoto... – Escutou uma voz grave anunciar. Estava cheia de piedade e compaixão.  Como conseguia detectar sentimentos tão gentis após presenciar o pior lado do ser humano?
- Há muitos deles por aqui, pelo visto. – Alguém concordou com rispidez. O dono da voz soltou um arquejo de dor. – Maldito seja aquele garoto estúpido dos cabelos vermelhos... Avançou em minha direção como um demônio, o ódio dançava em seus olhos, mas tinha quantos anos? Quinze? Que seja. Aquela lâmina enferrujada quase arranca-me uma costela! Os desesperados e furiosos geralmente causam mais dor de cabeça. – Ele riu, mas a nota de dor ainda estava ali. – Preciso dar um jeito nisso. Enviarei outros ceifadores para acompanhá-lo no campo.
Ceifadores... Thorn vasculhou sua memória tentando recordar de onde já ouvira aquela palavra. Lembrou-se do dono da taverna, Luc Caolho, que parecia ser o único em todo o vilarejo que de fato estivera em uma guerra. Perdera um olho durante a batalha da qual participara e também metade de um braço. Ele quem contou a Thorn sobre os ceifadores, soldados do exército vencedor que vasculhavam o campo após o fim do combate para encontrar homens moribundos que deliravam em sua própria dor, homens que não tinham qualquer salvação, então por isso lhes tiravam a vida como um ato de misericórdia final.
- São apenas crianças... Como puderam ser capazes de enviar crianças para a batalha? – Thorn ouviu a primeira voz questionar, mais como se estivesse falando consigo mesmo. – Vejo seu peito subir e descer, amiguinho. Mas você não sobreviverá a esses ferimentos. – O homem suspirou, exausto. – Se puder dizer-me o nome de sua família... Faremos o possível para que seu corpo repouse com dignidade.
Cego em sua dor e quase sendo abraçado pela inconsciência, Thorn sentiu quando o homem aproximou o ouvido de sua boca. Estava falando com ele. A barba rala fez-lhe cócegas no queixo. Thorn tentou respirar fundo, mas como aquilo doía... Com seu último suspiro, com suas últimas forças, disse apenas uma palavra:
- Amyse. – Era o nome de sua família. Esperava que conseguissem devolver seu corpo à mãe e ao pai... O corpo do único filho, aquele que entrara vivo no campo de batalha e logo retornaria em uma mortalha... Que tenhamos vencido, Thorn rezou. Caso contrário... Tudo teria sido em vão. Tantas mortes... Tantas famílias com filhos a menos, tantas mães desoladas e pais que teriam de conformar-se com a ausência eterna de seus herdeiros... “Mãe, pai, me perdoem... Eu não fui capaz, eu não sou Thorn Punho de Ferro...”. Então sentiu algo penetrar-lhe o peito, mas a dor foi tão breve que quase não a notou. E tudo ficou escuro.
Ali Thorn morreu, o aprendiz de curtidor, o garoto de treze anos filho único de pais que o amavam mais que tudo... Ali todos os seus sonhos e pretensões morreram. Ali ele descobriu, da pior forma possível, a diferenciar a realidade da fantasia. Thorn Amyse nunca mais abriu os olhos.


E fim. Então, gente, esse foi um conto que escrevi há mais de um ano. Thorn tornou-se meu menino, meu pobre garoto de treze anos, vivendo num mundo tão cruel quanto o nosso, perecendo sob as guerras que os nobres travavam enquanto eles observavam do topo, movendo todos como peões. É um conto que gosto muito e que me enche um pouco de revolta.
O nome da coluna, Taverna, é em homenagem ao tópico A Taverna do Alvorecer do grupo Clube de Autores de Fantasia, um lugar fantástico onde me sinto mais do que acolhida. A Taverna do Alvorecer do CAF tem um texto introdutório maravilhoso da Janayna. Eu gostaria de poder atuar mais lá, só que infelizmente tenho estado com pouquíssimo tempo. Curta a página no Facebook e participe do grupo com a gente, seja você leitor ou escritor.


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