[Artigo] Noções de Tempo e Espaço - ou "Física Aplicada aos Romances de Fantasia"
E aí,? Bem-vindo de volta ao MeL. Nosso post de hoje será um pouquinho diferente: é o primeiro artigo que postamos. Para estrear essa coluna convidamos um conhecidíssimo do blog, o escritor M. A. Iora (o post de divulgação de seu livro, aliás, está entre os mais acessados do blog, contando com exatamente 2709 cliques! Confira aqui). Enfim, hoje ele veio falar sobre um assunto que acredito ser de suma importância para você, caso seja um futuro escritor (ou apenas um leitor curioso): as noções de tempo e espaço dentro dos livros que a gente ama escrever - ou ler. Você está achando um pouco exagerado todo esse cuidado? Bem, pense outra vez. Nas palavras de Iora:
Existem autores famosos, cujos livros se tornaram filmes, e que não têm a menor noção de tempo e espaço. (...) Esses cuidados darão credibilidade técnica ao seu trabalho, uma coerência esperada de uma obra bem desenvolvida e realmente pensada, não um monte arbitrariedades incoerentes registradas no papel (...).Acho que não preciso dizer mais nada. Vamos ao artigo!

Noções de Tempo e Espaço, ou
“Física Aplicada aos Romances de Fantasia”
Por M.A. Iora
Índice
1. Introdução
2. Pertinência
3. Física Mecânica Básica
3.1. Grandezas, Fórmulas e Unidades
3.2. Distância Percorrida
3.3. Passagem do Tempo
3.4. Velocidade de Viagem
3.5. Subida de Morros, Colinas e Montanhas
4. Exemplo
5. Resumo
6. Conclusão
1. Introdução
Como escritor, não basta você desenvolver um enredo e trabalhar as
personagens de sua história, é necessário que você demonstre um controle, no
mínimo coerente, de dois fatores muito
importantes na narrativa: Tempo e Espaço.
Não parece, mas são dois fatores importantíssimos, sim, ao menos aos
olhos de um leitor crítico.
Creio que a maioria dos leitores ignora esse detalhe, atento mais à
dinâmica da narrativa do que à sua mecânica real, mas como escritor penso que é
mais do que necessário manter uma coerência. Não importa se meus leitores não
perceberão – eu estou percebendo. O
contrário é que se torna um problema.
Percebendo que alguns colegas escritores estavam apresentando problemas
com esse aspecto, resolvi escrever essa matéria como forma de orientação e –
por que não? – inspiração.
2. Pertinência
Ao escrever, frequentemente precisamos descrever a distância que um
personagem percorreu, o tempo que se passou em uma viagem, ou então a distância
que o personagem percorreu em determinado período de tempo.
Por exemplo, um sacerdote demoníaco sequestra uma princesa e foge com ela
para seu castro, a cinquenta milhas de distância. Ele planeja sacrificá-la em
honra ao tenebroso demônio Capeta da Charneca, na noite seguinte, a noite de
lua sangrenta. No primeiro dia o rei envia seus soldados em resgate à filha,
mas teme que eles não consigam obter sucesso. Para sua sorte, na mesma noite um
grupo de aventureiros chegou à cidade e aceitou o desafio de salvar a princesa...
mas eles terão tempo hábil para isso?
Um dia é suficiente para percorrer cinquenta milhas e ainda invadir o
castro do sacerdote? Você consegue facilmente afirmar que sim, ou que não?
E, mais importante: para a narrativa, é relevante saber se o tempo é
suficiente?
A resposta para as duas perguntas é: depende. Depende de como é o grupo
de aventureiros, se estão a pé, montados a cavalo ou viajando em uma carroça,
se estão saudáveis e vigorosos, se o terreno é favorável... E também depende se
o escritor se preocupa em ser coerente e respeitar as leis mais básicas da
Física, e em não cometer gafes bizarras.
Apesar de o exemplo ter sido bastante simplório e de cálculo rápido, é
para resolver questões dessa natureza que um escritor deve recorrer a uma
ferramenta que aprendeu na escola: a Física.
3. Física Mecânica Básica
3.1. Grandezas, Fórmulas e
Unidades
É de se esperar que qualquer romancista tenha aprendido Física Mecânica
no colégio; mesmo que odeie o assunto, ou não se lembre do mesmo, é melhor não
desprezá-lo.
Para noções de tempo e espaço em suas histórias, você precisa relembrar
apenas a parte mais básica da Física, a Cinemática, e usará basicamente três
grandezas fundamentais: distância, tempo e velocidade. Relembrando:

Onde:
d =
distância
t
= tempo
v
= velocidade
As unidades padrão no Sistema Internacional são metros (m), segundos (s) e metros por segundo (m/s), mas você
poderá convertê-las mais tarde de acordo com suas necessidades, já que
provavelmente calculará distâncias em quilômetros e tempo em horas.
Existem várias expressões matemáticas para se trabalhar as relações entre
as grandezas, você deverá relembrar (ou pesquisar) a que julgar mais adequada.
Por exemplo:
1 km = 1.000 m = 10³ m
1 h = 3600 s = 60² seg
Assim como 100 m = 0,1 km, ou 1 min = 60 s, e assim por diante. Isso aqui
não é uma aula de matemática! Se for necessário, faça uma pesquisa por “regras
de conversão de unidades de medida” na internet para relembrar.
Mas é muito importante você lembrar que, em velocidade, 1 m/s corresponde a 3,6 km/h. Essa
relação será muito importante, dependendo do cálculo que você tiver de fazer.
Nota pessoal: seja em metros, em quilômetros, em milhas ou léguas, a
distância é uma das principais grandezas presentes em uma narrativa. Metro é a
unidade padrão pelo sistema internacional, e juntamente com os quilômetros (ou kilo metros, 10³ metros) facilitam
estimar as distâncias ao imaginá-las, mas acho que quilômetros são unidades deselegantes para uma obra de fantasia.
Palmos e polegadas, milhas e léguas, bem como demais unidades derivadas do
Sistema Imperial, soam muito mais interessantes justamente por terem origens
bastante rudimentares e “medievais”.
3.2. Distância Percorrida
Existem duas formas de se inserir a distância percorrida em uma história,
a arbitrária e a condicionada.
A arbitrária é quando o autor determina as distâncias com base em
conceitos predefinidos; por exemplo, que a distância entre duas cidades é de
trinta quilômetros. Não há nenhum problema quanto a isso, exceto que ao arbitrar a distância, você condiciona o
tempo (e/ou a velocidade).
A condicionada é quando o autor determinou um intervalo de tempo de um
evento na narrativa e, portanto, a distância passível de ser percorrida naquele
intervalo é limitada e deve ser estimada de forma coerente.
Assim, para estimar a distância percorrida condicionada a um intervalo de
tempo, usamos a fórmula:

3.3. Passagem do Tempo
Assim como ocorre para a distância, existem duas formas de se inserir o
tempo em uma história, a arbitrária e a condicionada.
A arbitrária é quando o autor determina (por qualquer razão) que
determinado evento dura um período específico; por exemplo, “os heróis
conseguem caminhar por seis horas
antes de caírem exaustos”. Quando as coisas são definidas desta forma, não há
nenhum problema, exceto o fato de que ao
arbitrar o tempo, você condiciona a distância (e/ou a velocidade).
A condicionada é quando o autor determinou uma distância a ser percorrida
na narrativa, portanto o tempo precisa estar coerente a esse deslocamento,
respeitada ainda uma velocidade coerente.
Assim, para estimar o tempo condicionado ao deslocamento, usamos a
fórmula:

3.4. Velocidade de Viagem
Muito bem, podemos facilmente arbitrar a distância e o tempo, pois são
simples de “visualizar”. Mas e quanto à velocidade? Como você saberá a que
velocidade uma pessoa caminha? Terá de pesquisar no Google para saber?
Para facilitar sua vida, vou usar dados pesquisados no Google. A velocidade de caminhada pode ser
considerada como 5 km/h, o que é bom, para fins de simplificação. É uma
velocidade coerente? Você saberá dizer se pratica caminhada e já verificou a
distância que consegue percorrer em uma hora. Eu diria que é bem coerente,
apesar de eu caminhar a cerca de 6 km/h (meu ritmo de caminhada é rápido).
Então, a velocidade é 5 km/h prevê
uma pessoa jovem, saudável, sem carga e caminhando em um ritmo rápido, mas não
cansativo.
Ah, mas e o que fazer quando o personagem é um velho, ou um guerreiro de
armadura completa de batalha com 50 kg de equipamentos, ou um moribundo? E se
estiver apressada? Ou correndo?
Não existem fórmulas para se determinar a velocidade nessas condições,
porque são casos muito específicos. Então o que você precisa é estimar um fator “N” que represente essas variações.
E o que é esse fator? Ele é o reflexo matemático de uma ou mais variações
sobre a sua velocidade, de modo a atrasá-la ou acelerá-la. E não existem parâmetros definidos, você pode
(deveria!) criar os seus próprios. Assim, como mero exemplo para
inspirá-lo, apresento a tabela abaixo:
Situação
|
Fator
|
Situação
|
Fator
|
Sujeito cansado
|
0,7
|
Terreno plano, planície
|
1,0
|
Sujeito idoso
|
0,5
|
Terreno ondulado, planalto
|
0,8
|
Sujeito com a perna ferida
|
0,7 a 0,2
|
Subida de uma colina
|
0,8 a 0,2
|
Sujeito com carga em excesso
|
0,7 a 0,3
|
Subida de uma montanha
|
0,6 a 0,05
|
Considerando que a velocidade-base é de 5 km/h, um sujeito idoso, cansado
e percorrendo um terreno ondulado se moveria a v.N = 5 x (0,7 x 0,5 x 0,8) =
1,4 km/h.
Perceba que as duas linhas inferiores tem faixas de fatores porque são
parâmetros variáveis: o quão ferida(s) está(ão) a(s) perna(s)? Quanto é a carga
em excesso e quão difícil é de carregá-la? Qual a inclinação da colina e da
montanha, e elas têm trilhas ou exigem escalada bruta? E mesmo os parâmetros iniciais
são totalmente subjetivos: o quão cansado está o sujeito? O quão velho (e
saudável) ele é? A planície é livre e desimpedida, ou a vegetação força os
heróis a caminharem mais devagar?
Tais parâmetros devem ser considerados pelo escritor ao resolver estimar
a velocidade média de um personagem ou de um grupo. Lembrando: não é necessário
haver preciosismos, apenas uma estimativa um pouco coerente.
3.5. Subida de Morros, Colinas e
Montanhas
Bem, é fácil quando a trajetória é retilínea, mas e como calcular a
subida de um morro?
Antes de mais nada, você sabe como
se sobe um morro?
Percebi que muita gente imagina a subida de um morro como uma trajetória
retilínea e inclinada. Dependendo da declividade (inclinação) do morro, pode
até ser possível, mas geralmente não é. Geralmente a subida é feita de duas
formas distintas, a “espiral” contornando o relevo e a “zigue-zague”, que
também dependem das declividades do relevo.

O caminho “espiral” é a trilha que animais de carga fazem naturalmente ao
subir uma colina, procurando as menores declividades, ou em termos práticos,
“vencendo a altura aos poucos”. A trilha em “zigue-zague” é forçada por humanos
que esperam vencer uma altura maior com um deslocamento menor.
Independente do tipo de caminho, ambas as trajetórias podem ser (conceitualmente)
representadas por triângulos retângulos; então para determinar a distância
percorrida até o alto de um monte, você precisa arbitrar a diferença de cotas
(“altura”) a ser transposta e um ângulo de inclinação para a trajetória. Com
estes dados e a fórmula do Seno você conseguirá facilmente encontrar o
resultado – a hipotenusa do triângulo.

Onde:
sin α = seno do ângulo α
(arbitrado)
Y = diferença de cotas,
“altura” do monte
d = hipotenusa do triângulo
retângulo, distância percorrida
Tendo a distância percorrida, fica fácil substituir seu valor nas
fórmulas básicas para determinar o tempo ou a velocidade.
4. Exemplo
Vamos então a um pequeno exercício para demonstrar como um escritor pode
fazer uso da mecânica apresentada.
“Elesbão, o Degolador, partiu de sua cidade em busca de aventuras, fama,
fortuna e mulheres, não necessariamente nessa ordem. Negro alto e corpulento,
munido apenas de sua faca, Rasgagoela,
ele tomou a estrada norte e enveredou pela estrada alta, que atravessava o
planalto relvado até chegar a Seratna, a Cidade dos Desmortos, trinta
quilômetros adiante.”
Como Elesbão é alto e corpulento, podemos assumir que ele caminha rápido; assim, usaremos um fator 1,2 para sua velocidade. Ele não leva carga que não sua faca, o que não diminui sua velocidade, e tomou uma estrada de um planalto relvado, ou seja, apenas com grama, que por si só não retarda seu deslocamento; mas como o planalto é um terreno ondulado, sua velocidade fica prejudicada, e usaremos um fator 0,8. Então a velocidade média de Elesbão é de (5 km/h x 1,2 x 0,8) 4,8 km/h. Com essa velocidade, para percorrer os 30 quilômetros, ele demorou cerca de (30 km / 4,8 km/h) 6,25 horas, ou melhor, 6 horas e (0,25 h x 60 min) 15 minutos. Como ele deve ter parado por para descansar e fazer um lanche, então sua viagem até Seratna durou cerca 7 horas, ou talvez 7 horas e 30 minutos (não faz muita diferença, a menos que o escritor quisesse indicar que ele chegou atrasado para determinado acontecimento).
5. Resumo
- (t) 1 hora = 60 minutos = 3600 segundos
- (d) 1 km = 1000 metros
- (v) 1 m/s = 3,6 km/h
- Velocidade de caminhada* = 5 Km/h
- Tempo que leva para percorrer 1 quilômetro* = 0,2 horas (x60 minutos =
12 minutos)
- Distância percorrida em um dia* = 50 quilômetros
* considerando condições ideais.
6. Conclusão
Talvez isso tudo seja um preciosismo desnecessário. Existem autores
famosos, cujos livros se tornaram filmes, e que não têm a menor noção de tempo e espaço.
Você, escritor, pode ignorar esses conceitos básicos e trabalhar as
coisas a seu bel prazer, é claro; e não será isso que impedirá seu sucesso.
Esses cuidados não tornarão a sua obra mais interessante, não vão conceder mais
fama e nem te trazer dinheiro. Esses cuidados darão credibilidade técnica ao seu trabalho, uma coerência esperada de
uma obra bem desenvolvida e realmente pensada, não um monte de arbitrariedades
incoerentes registradas no papel – que alguém (como eu) possivelmente
perceberá. E você não gostaria de passar por esse constrangimento, gostaria?
Espero que esta matéria seja de alguma valia para você, e que sirva de
inspiração para que tome cuidado em tornar sua obra o mais convincente e
coerente possível. Mesmo na fantasia, a física ainda se aplica – e se não for
aplicável nos mesmos termos, pelo menos justifique as mudanças.
Sorte e sucesso!
___
Michael A. Iora é acadêmico de
Engenharia Civil, autor da série As Crônicas de Herannon (www.herannon.com), e
tenta ser coerente sempre que possível.

E então? Soou chato a você? Saiba que é com isso que nós, escritores, temos de lidar para evitar o probleminha da incoerência. Para quem pensa que escrever é apenas sentar-se diante do computador ou caderno e criar mundos... Ledo engano seu. Não foi à toa que Tolkien levou doze anos para escrever O Senhor dos Anéis. Se escrever se tratasse apenas de colocar no papel o que nossa cabeça é capaz de criar, a vida seria muito mais fácil e eu teria 5 livros publicados hahahah É uma vida sofrida, senhores. Mas compensa. E como compensa!
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